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Como o grupo terrorista Hezbollah pratica crimes junto com o PCC na fronteira do Brasil
O Hezbollah, o grupo terrorista com o qual tropas israelenses entraram em combate no sul do Líbano nesta semana, está envolvido em crimes como contrabando de cigarros e tráfico de armas e drogas na região da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
O Hezbollah, o grupo terrorista com o qual tropas israelenses entraram em combate no sul do Líbano nesta semana, está envolvido em crimes como contrabando de cigarros e tráfico de armas e drogas na região da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
Investigações da polícia brasileira mostram que o grupo terrorista opera uma parceria com a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Os libaneses não fazem ações terroristas na região, mas fornecem armas para o PCC e em troca recebem proteção e podem se beneficiar de rotas de cocaína operadas pela facção.
A região de fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai vem sendo usada há décadas como refúgio de organizações criminosas ou terroristas como o Hezbollah, máfias italianas, chinesas e do leste europeu. A facilidade de trânsito entre os três países e a fragilidade das forças de segurança do Paraguai são alguns dos fatores que explicam a tendência, segundo analistas.
Autoridades de segurança da Argentina e do Paraguai aumentaram o nível de alerta sobre a região nesta semana e reuniões de emergência foram realizadas entre os três países para tratar da possível chegada destes terroristas do Hezbollah à região. O Brasil não se manifestou sobre o assunto.
Nas últimas semanas, Israel vem eliminando sistematicamente quase todas as lideranças da cúpula do Hezbollah, incluindo seu líder máximo, Hassan Nasrallah, morto em um ataque aéreo em 27 de setembro. O temor é que lideranças terroristas sobreviventes deixem a região em busca de refúgio em outras partes do mundo.
Relatórios de inteligência americanos revelam que o Hezbollah chegou ao Brasil na década de 1980 com a grande imigração provocada pela fuga da guerra civil no Líbano. Os integrantes do Hezbollah tiveram facilidade para se infiltrar na comunidade árabe que havia se estabelecido no país na primeira metade do século 20, especialmente na região de Foz do Iguaçu (PR). Autoridades locais estimam a comunidade árabe na região em cerca de 30 mil pessoas.
Na década de 1990 autoridades argentinas atribuíram ao Hezbollah os maiores atentados terroristas já registrados na América do Sul. Primeiro os ataques à bomba contra a Embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992, e depois os ataques à Associação Mútua Argentina-Israelense (Amia), em 1994. Os atos deixaram pelo menos 100 mortos e autoridades argentinas afirmam suspeitar que eles foram organizados na tríplice fronteira.
Nos anos seguintes, o viés do grupo mudou. Deixou de ser terrorista para focar em ações criminosas como: tráfico de drogas, de armas, lavagem de dinheiro e contrabando de cigarros.
O Hezbollah é uma organização terrorista xiita de origem libanesa que é treinada e financiada pelo governo do Irã. O grupo domina a política e boa parte da estrutura social do Líbano. Mas com as sanções impostas nas últimas décadas ao Irã, a organização passou a se envolver em crimes comuns em outros países para levantar recursos e enviá-los ao Líbano. No início dos anos 2000 os cerca de 500 membros da organização terrorista na região da tríplice fronteira focaram suas ações para capitalizar o núcleo da América do Sul e lavar dinheiro de origem ilícita.
Em 2019, o então O secretário-geral das Relações Exteriores do Brasil, Otávio Brandelli, disse que é “um dado da realidade” que o Hezbollah atua na América do Sul. Esta foi a primeira vez que o governo brasileiro admitiu a presença do grupo extremista no país, mas até hoje o Brasil não o reconhece oficialmente como célula terrorista. A reportagem enviou questionamentos ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) sobre a possível chegada de novos integrantes do núcleo à região após a intensificação dos conflitos no Oriente Médio, mas não obteve retorno.
Relatórios da organização não governamental Foundation for Defense of Democracies (Fundação para a Defesa das Democracias) dos Estados Unidos, têm mostrado ao longo dos últimos anos a preocupação de governos com a presença do Hezbollah. Além das organizações criminosas brasileiras como o PCC, os documentos indicam que o Hezbollah se aliou a outros grupos como as Farc, da Colômbia e o Zetas, no México.
A relação criminosa entre o Hezbollah e o PCC
O governo americano estima que o núcleo terrorista do Hezbollah na tríplice fronteira arrecade cerca de US$ 1 bilhão, mas as cifras precisas são uma incógnita. Já relatórios da Polícia Federal do Brasil mostram que, para intensificar suas ações criminosas, o Hezbollah começou a fazer parcerias com facções criminosas brasileiras a partir dos anos 2000.
O contrabando de cigarros é uma das atividades criminosas exercidas pelo grupo libanês. Ela consiste em enviar cigarros falsificados ou de marcas menos conhecidas do Paraguai para o Brasil sem pagamento de impostos – as taxas representam a maior parte do preço dos cigarros. Para fazer esse tipo de contrabando, o Hezbollah precisa da colaboração do PCC, que desde 2016 controla o crime na região da tríplice fronteira.
“Muitas facções criminosas passaram a intensificar o contrabando de cigarros que é um mercado altamente lucrativo, bilionário, e com penas menores que o tráfico de drogas. Viram nesse mercado uma forma rápida e eficiente de capitalização”, explica o delegado da Polícia Federal, Marco Smith.
Outra linha de ação do Hezbollah investigada pela Polícia Federal é o tráfico de drogas. O PCC estabeleceu uma rota de tráfico na região. A facção compra toneladas de cocaína de grupos criminosos produtores estabelecidos em países andinos, como Bolívia, Peru e Equador e transportam o entorpecente para o Paraguai. Em seguida, os criminosos brasileiros atravessam a fronteira brasileira com a cocaína escondida em carros, caminhões e até pequenos aviões. O entorpecente é então levado para portos brasileiros onde é embarcado ilegalmente em contêineres que seguem para a África e para a Europa.
Segundo investigações da polícia, membros do Hezbollah participariam desse esquema comprando parte dessa cocaína em portos africanos e europeus e a distribuindo em países do Oriente Médio e do sudeste da Ásia.
O consumo de cocaína no Oriente Médio é baixo em comparação aos mercados da Europa e dos Estados Unidos. Mas segundo a Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife), há registros de comércio da droga na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes, na Jordânia, no Líbano e na Síria e Iêmen. O PCC aparece como uma das organizações criminosas envolvidas no tráfico de cocaína para a região.
Outra linha de parceria entre o Hezbollah e o PCC é a compra de proteção. A facção brasileira domina os presídios no país e ofereceria ao Hezbollah proteção para membros do grupo libanês que acabam presos e vão parar no sistema prisional brasileiro.
Em contrapartida, segundo informações da PF, o Hezbollah ofereceria ao PCC armas leves enviadas em carregamentos internacionais direcionados ao Paraguai, que depois entrariam ilegalmente no Brasil. As armas possivelmente são fornecidas ao Hezbollah pelo Irã. Há indícios de que criminosos do PCC possam até ter recebido treinamento paramilitar de membros dos Hezbollah.
Lei brasileira antiterrorismo é ineficaz contra ações do Hezbollah e do PCC
Há uma década, a ligação entre o crime organizado brasileiro e núcleos terroristas foi tema de debate no Congresso Nacional com relatos de que os “serviços de inteligência brasileiros reuniam uma série de indícios de traficantes se associando a criminosos de origem libanesa, ligados ao Hezbollah, organização com atuação política e paramilitar fundamentalista islâmica xiita, sediada no Líbano” e que “relatórios da Polícia Federal apontavam que esses grupos teriam se ligado ao PCC”.
Em 2016 o Brasil aprovou a Lei Antiterrorismo (13.260), que passou a disciplinar o terrorismo e reformulou o conceito de organização terrorista. Na prática, porém, operadores da lei, como autoridades policiais, núcleos de investigação, fiscalização e controle, têm avaliado que ela foi feita para não funcionar diante da grande preocupação em não criminalizar movimentos “populares”, com ênfase neste caso ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
O pesquisador sobre o crime organizado Diorgeres de Assis Victório diz que a lei antiterrorismo brasileira traz pontos de atenção. “Infelizmente tenho que dizer que a lei não possui uma técnica legislativa penal boa, mas podemos melhorá-la. Importante mencionar que a lei foi criada em razão das exigências para a Olimpíada de 2016 e o país relutou bastante, sob o argumento de sermos um país pacífico”, pontua.
Assim, na prática, membros do Hezbollah e integrantes do PCC não tendem a ser presos por terrorismo no Brasil, pois a lei antiterrorismo prevê que as ações dos suspeitos precisam ser caracterizadas por motivação de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião. Mas eles podem ser detidos com base no Código Penal e processados pela prática dos crimes comuns, como contrabando, tráfico e lavagem de dinheiro.
Dificuldades no enfrentamento ao crime organizado e ligações com núcleos terroristas
O promotor do Gaeco de São Paulo, Lincoln Gakiya, que há duas décadas vive sob proteção por ameaças de morte vindas do PCC, tem reforçado a necessidade da criação de mecanismos para o Estado brasileiro e as instituições conseguirem atuar livremente no enfrentamento às organizações criminosas.
Segundo ele, os Estados Unidos já classificam o PCC uma organização criminosa de risco ao país, da mesmo forma o Hezbollah e cartéis mexicanos são rotulados. A facção criminosa brasileira despacha, ilegalmente, somente pelo Porto de Santos, 4 toneladas de cocaína pura à Europa todos os meses, segundo o promotor.
Segundo o Ministério Público Federal do Brasil, em 2020 uma operação conjunta desarticulou uma célula terrorista do Hezbollah na tríplice fronteira. A prisão envolveu três cidadãos do Líbano, suspeitos de integrar o Hezbollah, detidos no Paraguai. Eles foram extraditados para os Estados Unidos. “Um dos libaneses tem mais de 31 acusações criminais relacionadas ao terrorismo”, descreveu o MPF.
A operação foi chamada de “Sem Fronteiras” e culminou com a extradição dos árabes. Ela contou com ações conjuntas entre Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos e Romênia. “O trabalho de cooperação entre esses países revelou que os três suspeitos enviavam grandes quantidades de cocaína para os EUA, Europa e Oriente Médio, e o dinheiro proveniente deste tráfico era usado para financiar o grupo terrorista Hezbollah”, afirmou o MPF.